Escondi meus fantasmas
Nas pilhas de garrafas vazias
Nas cinzas das guimbas amarelas
Onde uma só pessoa ousou olhar
Desde os primeiros dias de vida
Feridas pelo corpo, respirar pesado
Perdi boa parte do paladar
Rejeitava o leite materno
Desde cedo, com meus pais adotivos
Vivia o medo do final de semana
Muito álcool, imprudências
Brigas constantes e castigos severos
Minhas horas em casa eram contadas
Segundo por segundo
Suspiro por suspiro
A vontade de sumir era aliada
Poucas mãos se estendiam
Amigos, colegas, desconhecidos
Torcia para chegar à adolescência
E ela chegou, precocemente
Chegou com ela, também a decisão
Se iria sumir, de fato, ou apenas ir embora
Embora, fui, ou talvez apenas acreditei
Que estava voando para longe da tempestade
Mas a água não parava de me molhar
A chuva me acompanhava
Lavava lágrimas, sujeiras, feridas
Acostumado, fiquei, ao temporal
Bolhas e mais bolhas
Quilômetro por quilômetro
Bolhas e mais bolhas
Esqueci o que era carinho, caminho
Esqueci, também, o preço
O quão custoso era livrar-se de mim
Esqueci, também, o valor
Do afeto, olhar, toque, enfim
Fui me familiarizando aos gostos
De arroz em potes, frutas verdes
Talher de plástico, estômago vazio
Unhas sujas, ao cheiro de terra molhada
Após alguns anos, encontrei alguém
Que há muito havia sido tirada de mim
Vivendo sua vida parcial, comum
Com uma ferida enorme no peito
Direto, torto, indisciplinado
Mas cheguei
E aqui estou
Ou talvez já houvera morrido
